sábado, 13 de junho de 2015



Por: Maria Lucia Fattorelli*



Depois de pelo menos 14 anos investigando o processo de endividamento público no Brasil – tanto em âmbito federal como de estados e municípios – e em outros países da América latina, Europa e África, determinamos a existência do que passamos a denominar “Sistema da Dívida”.

A compreensão desse sistema ajuda a decifrar a geração de crises sucessivas do modo de acumulação capitalista, bem como o funcionamento de diversos países, que submetem decisões estratégicas a interesses do setor financeiro privado.

Neste breve artigo abordo a atuação do Sistema da Dívida durante a recente crise financeira deflagrada na Europa e Estados Unidos a partir de 2008, apresento dados do endividamento público no Brasil e finalizo relatando a relevante experiência do Equador com a realização de uma auditoria oficial de sua dívida pública.

Sistema da Dívida Em geral, as pessoas acreditam que o endividamento público é o resultado do acúmulo de recursos recebidos por meio de empréstimos tomados por entes públicos (governo federal, estadual, municipal, ou empresas estatais).

No entanto, diversas investigações realizadas pela Auditoria Cidadã da Dívida no Brasil e em várias partes do mundo têm demonstrado que grande parte das dívidas públicas são geradas por alguns mecanismos que atuam tanto em sua origem como em seu contínuo crescimento. Tal geração de dívida sem contrapartida real é uma distorção do instrumento do  endividamento público.

O “Sistema da Dívida” corresponde à utilização do endividamento público às avessas, ou seja, em vez de servir para aportar recursos ao Estado, o processo de endividamento tem funcionado como um instrumento que promove uma contínua e crescente subtração de recursos públicos, que são direcionados principalmente ao setor financeiro privado.

Para operar, esse sistema conta com um amplo conjunto articulado de engrenagens, compostas por privilégios legais, políticos, econômicos, em conjunto com a grande mídia, sob o domínio do poder financeiro mundial.

O livro “Auditoria Cidadã da Dívida Pública: Experiências e Métodos”ii - lançado ano passado no Brasil e Peru e este ano na Europa (em Bilbao, no País Basco) - detalha tais mecanismos, sobressaindo-se os seguintes:

·         A geração de dívidas sem contrapartida alguma ao país ou à sociedade;

·    aplicação de mecanismos meramente financeiros (tais como taxas de juros abusivas, atualização monetária automática e cumulativa, cobrança de comissões, taxas, encargos etc.) que fazem a  dívida crescer continuamente, também sem qualquer contrapartida real;

·      refinanciamentos que empacotam dívidas privadas e outros custos que não correspondem a entrega de recursos ao Estado, provocando elevação ainda maior no volume do  endividamento, e beneficiando unicamente ao setor financeiro privado nacional e internacional;

·     esquemas de “salvamento de bancos” que promovem a transformação de dívidas privadas em dívidas públicas;

·        utilização do endividamento gerado de maneira ilegítima como justificativa para a implementação de medidas macroeconômicas – Planos de Ajuste Fiscal - determinadas pelos organismos internacionais (principalmente FMI e Banco Mundial), tais como: privatizações, reforma da previdência, reforma trabalhista, reforma tributária, medidas de controle inflacionário, liberdade de movimentação de capitais etc. Tais medidas são contrárias aos interesses coletivos e visam retirar recursos públicos para destiná-los ao “Sistema da Dívida”, beneficiando principalmente ao mesmo setor financeiro.



Conjuntura internacional: financeirização, crise “financeira” e crise “da dívida”



 A atual crise financeira deflagrada nos Estados Unidos da América do Norte (EUA) em 2008, logo espalhada por toda a Europa, escancarou a forma de atuação do setor financeiro e a usurpação do instrumento do endividamento público.

Essa crise já vinha sendo anunciada há anos, por razões inerentes ao funcionamento do modelo de acumulação capitalista, mas adquiriu proporções gigantescas devido à desregulamentação financeira aliada ao uso de sofisticada tecnologia, que tem possibilitado a realização de milhões de operações por segundo, envolvendo várias instituições de diferentes partes do mundo, inclusive e especialmente paraísos fiscais. Em ambiente marcado por exacerbado poder da tecnocracia e da grande mídia controlada pelo poder econômico, tremenda especulação e corrupção, além do sigilo bancário, a crise logo se expandiu para o setor estatal e atingiu outros setores: social, ambiental, alimentar, com repercussões sérias que vão muito além do campo financeiro.

A crise tem suas bases nas contradições do próprio sistema capitalista: a ânsia de lucro às custas da redução de salários e benefícios dos trabalhadores provoca a perda de sua capacidade de consumir, afetando diretamente os interesses dos capitalistas. Sem perspectivas de aumento de lucros no setor produtivo, o sistema promove a desregulamentação financeira e passa a buscar cada vez mais o ramo financeiro e as operações especulativas, marcadas pela criação exagerada de papéis; os produtos financeiros especulativos e sem lastro, principalmente os denominados derivativos – que têm sido chamados de ativos “tóxicos”.

Apesar de inúmeras denúncias de fraudes, as nações mais ricas do mundo decidiram “salvar” instituições financeiras. Diversas medidas foram tomadas, destacando-se: a estatização parcial de instituições financeiras; a realização de aportes diretos dos respectivos Tesouros Nacionais aos bancos, que chegaram a contar com aprovação do Parlamento em alguns países; a emissão de grandes quantidades de dólares e euros que foram repassados diretamente aos bancos; e a criação de “bad banks”, isto é, bancos paralelos destinados a absorver os excessos de “ativos tóxicos”.

Nos EUA, por exemplo, a auditoria feita pelo Departamento de Contabilidade Governamental revelou a transferência de 16 trilhões de dólares, secretamente pelo FED a bancos e empresas, sob a forma de empréstimos com taxas de juros próximas de zero, no período de dezembro/2007 a junho/2010. Esse fato foi denunciado pelo Senador norteamericano Bernie Sandersiv.

O resgate dos bancos que foram considerados “grandes demais para quebrar”, ilustra claramente o “modus operandi” do Sistema da Dívida, uma vez que todas as medidas adotadas para esse salvamento provocaram o crescimento acelerado da dívida “pública”. Logo que a dívida é gerada dessa forma ilegítima, a referida dívida “tem que ser paga” e o ônus tem sido transferido para toda a sociedade por meio de planos de ajuste fiscal que reduzem gastos sociais para que os recursos se destinem para o pagamento do serviço da dívida.

Na Europa, autoridades da União Europeia e ministros de finanças também decidiram “salvar” os bancos. É importante ressaltar que desde o ano de 2008 já se previa que tal decisão empurraria os países para uma crise, conforme reveladora notícia publicada pelo periódico The Telegraph em 11 de fevereiro de 2009v. Apesar disso, prevaleceram os interesses do setor  financeiro privado e a conta foi transferida para a sociedade por meio do endividamento “público”.

 

O Sistema da Dívida no Brasil


Os números da dívida pública brasileira indicam que já estamos em situação de crise da dívida que de fato configura um gargalo e compromete fortemente os gastos sociais necessários ao atendimento dos direitos sociais devidos à população.

Relativamente à dívida externa federal, em 31/12/2013, esta alcançou US$ 485 bilhões (R$ 1,15 trilhão, considerando do câmbio de R$ 2,30). É verdade que a maior parte dessa dívida externa é privada, porém, possui a garantia do governo brasileiro, e, dessa forma, constitui uma obrigação que deve ser computada em sua integralidade.

Por sua vez, a chamada dívida interna federal atingiu o patamar de R$ 2,986 trilhões em 31/12/2013. A maior parte dessa dívida está nas mãos de bancos nacionais e internacionais.

Dessa forma, a dívida brasileira alcançou no final de 2013, R$ 4,1 trilhões ou 85% do PIB.

Em geral, os números divulgados pela grande mídia e até mesmo por alguns setores do governo apontam cifras bem mais amenas que essas. Isso ocorre devido à utilização de diversos artifícios para “aliviar” o peso dos números, tais como:

• Dívida “Líquida” em lugar da dívida bruta;

• Juros “reais” em lugar dos juros nominais;

• Contabilização de parte dos juros nominais como se fosse amortização;

• Exclusão da Dívida Externa “Privada” das estatísticas, desconsiderando a
existência de garantia pública sobre essa dívida privada;

• Gráficos que fazem a comparação Dívida Líquida com o PIB, mostrando uma
ilusória queda do montante da dívida.

O gráfico a seguir retrata a destinação dos recursos do Orçamento Geral da União Executado em 2013 e mostra que a dívida pública é a principal responsável pelo não atendimento das necessidades urgentes do povo brasileiro. Em 2013, o total do orçamento executado foi R$ 1,783 trilhão, dos quais nada menos que 40,30% (correspondentes a R$ 718 bilhões) foram destinados a juros e amortizações da dívida. Enquanto isso, a Saúde foi contemplada com somente 4,29%, a Educação com 3,7%, a Assistência Social com 3,41%, a Reforma Agrária com apenas 0,15% e o Saneamento Básico com 0,04%.

Fonte: Senado Federal – Sistema SIGA BRASIL – Elaboração: Auditoria Cidadã da Dívida. Nota: Inclui o “refinanciamento” da dívida, pois o governo contabiliza neste item grande parte dos juros pagos. Não inclui os restos a pagar de 2013, pagos em 2014.


Cabe ressaltar que o percentual de 40,30% destinados ao endividamento federal corresponde ao quádruplo do valor destinado a todos os 26 estados, ao Distrito Federal e aos 5.570 municípios brasileiros, ou seja, 10,43% do orçamento da União. Essa distorção representa uma afronta ao Federalismo, princípio consagrado no art. 1o de nossa Constituição Federal.

Os orçamentos de diversos estados e municípios também são afetados pela subtração de recursos para o pagamento de dívidas públicas, ou seja, o Sistema da Dívida se reproduz internamente, em âmbito regional.

No caso dos estados, o Sistema da Dívida operou fortemente no final da década de 90, quando foi realizado o refinanciamento de dívidas pela União. Esse refinanciamento veio inserido em um pacote que exigiu a privatização do patrimônio estadual, rigoroso programa de ajuste fiscal que exigiu cortes de gastos com pessoal e impediu investimentos públicos, além da absorção de passivos de bancos estaduais no esquema denominado “PROES”. Dessa forma, o refinanciamento pela União já nasceu inflado por valores que os estados nunca chegaram a receber, correspondentes a tais passivos cuja natureza se desconhece completamente.

Adicionalmente, não foi levado em consideração o baixo valor de mercado dos títulos estaduais, tendo esses sido refinanciados a 100% de seu valor de face, o que significou enorme beneficio ao setor financeiro em detrimento das finanças estaduais.

Em cima dessa base inchada, foram aplicadas condições financeiras inaceitáveis entre entes federados: o Tesouro Nacional passou a exigir dos estados o pagamento de remuneração nominal, composta por uma combinação de atualização monetária mensal, automática e cumulativa, calculada pelo IGP-DIvi , acrescida de juros de 6 a 9% ao ano. Para se ter uma ideia do peso desses juros nominais, no ano de 2010, o Estado do Rio Grande do Sul pagou ao governo federal remuneração de mais de 18% sobre toda essa dívida. O Estado de Minas Gerais pagou ainda mais; quase 20%, porque as taxas de juros reais aplicadas são de 7,5% a.a., mais o IGP-DI, enquanto do Rio Grande do Sul é 6%. O município de São Paulo foi o mais onerado, pois paga juros reais de 9%a.a. sobre o saldo da dívida corrigido mensalmente pelo IGP-DI. Naquele mesmo ano, o governo federal aplicou bilhões de dólares em títulos da dívida norte-americana, cuja remuneração é quase nula.

O resultado desse refinanciamento em bases tão extorsivas tem provocado a multiplicação da dívida por ela mesma, em processo inconstitucional de acumulação de juros sobre juros. Nesse contexto, quase todos os entes federados estão contraindo dívida externa junto ao Banco Mundial e outros bancos privados internacionais para pagar à União, transformando dívida interna ilegítima (e até ilegal sob vários aspectos) em dívida externa. Além de significar uma aberração tomar empréstimo externo para pagar ao governo federal, tais empréstimos externos ficam sujeitos à variação cambial (justamente quando as moedas internacionais estão em trajetória de alta) e às perversas imposições dos credores internacionais, que exigem implementação de antirreformas e redução de gastos que envolvem a desestruturação das carreiras de Estado e dos serviços públicos para a população.

É devido a esse “Sistema da Dívida” que um país tão rico como o Brasil, considerado como sendo a 7a maior economia do mundo, amarga índices inaceitáveis de miséria, fome, desemprego, precariedade de serviços públicos e é um dos mais cruéis em concentração de renda. A ONU nos classificou em 79o lugar no ranking do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) em 2014. Esse inaceitável paradoxo tem raízes históricas, mas nas últimas décadas a principal responsável por essa distorção é a dívida pública.


Exemplo do Equador e a necessidade de realização de completa auditoria da dívida



Uma das principais tarefas já desempenhadas por nosso movimento foi a efetiva participação na comissão de auditoria oficial da dívida do Equador, processo que gerou a redução dos gastos com a dívida, ao mesmo tempo em que aliviou recursos que permitiram a multiplicação dos investimentos sociais naquele país, especialmente em educação e saúde. São impressionantes as visíveis mudanças em decorrência dos efetivos investimentos sociais que em uma década saltaram de 600 milhões de dólares em 2001 para quase 5 bilhões de dólares em 2011, como mostra o gráfico a seguir, que retrata a inversão entre os gastos com a dívida e os gastos sociais naquele país:

Adicionar legenda



O que se pretende com a realização da auditoria da dívida aqui no Brasil é exatamente o mesmo, principalmente considerando que já foram determinados inúmeros indícios de ilegalidades e ilegitimidades nas investigações já realizadas inclusive durante a CPI da Dívida Pública realizada na Câmara dos Deputados.

. Além disso, a crise financeira internacional tem afetado o Brasil, e pode se aprofundar ainda mais diante do processo de desregulamentação financeira que tem avançado no país, permitindo emissão e negociação de produtos financeiros sem limites; justamente o que provocou a crise lá fora.

Não podemos continuar destinando a maior parcela do orçamento federal ao pagamento de uma dívida nunca auditada, com fortes indícios de ilegalidades e ilegitimidades, enquanto faltam recursos para as necessidades sociais básicas da população e para a garantia dos direitos e da dignidade no trabalho dos servidores públicos brasileiros.

Por isso defendemos a realização de completa auditoria dessas dívidas, com participação cidadã, a fim de deter esse “Sistema da Dívida” e modificar a inaceitável realidade de injustiças sociais vigente em nosso país.

O papel da cidadania é de suma relevância, pois além de conhecer o processo, deve procurar incidir nessa realidade para modificar esse vergonhoso esquema que tem submetido nosso país a uma escravidão incompatível com a situação econômica real, suficiente para garantir vida digna e abundante para todas as pessoas.

É necessário conhecer que dívidas os povos estão pagando. A AUDITORIA é a ferramenta que nos permite conhecer e documentar este processo.









Maria Lucia Fattorelli é coordenadora do movimento Auditoria Cidadã da Dívida no Brasil desde 2001. Atualmente, integra a Comissão Internacional instituída pelo Parlamento da Grécia para realizar auditoria da dívida do país. Foi membro da Comissão para a Auditoria Integral Equatoriana (2007-2008) e assessorou a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da dívida pública na Câmara dos Deputados do Brasil (2009-2010).










Fonte: http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2014/10/USP-14-10-2014-O-Sistema-da-Divida-no-Brasil-e-no-Mundo.pdf

Comentários